Wednesday, January 30, 2008

Mensagem para uma jovem educadora

Ano passado, entusiasmada com as possibilidades comunicativas da Internet, certa estudante de pedagogia começou a publicar um blog muito simpático. Visitei o espaço diversas vezes e incentivei a iniciativa da moça. Uma dia, porém, ela postou uma mensagem que me deixou preocupado. Tratava-se de um texto que resumia um estudo histórico sobre educação no Brasil. O escrito refletia uma visão histórica que Gardner chama de modelo "mocinho bandidos", exaltando uma determinada tendência e desconsiderando todas as demais. Tal visão da história é lastimável, mais ainda quando é promovida por educadores. Ela é parcial, simplificadora, reducionista, ingênua etc. E, sobretudo, resulta num entendimento equivocado da aventura humana de dar sentido à vida. Não quis comentar o texto da moça no próprio blog. Mas encaminhei a ela uma longa observação em privado. Reproduzo aqui minha mensagem na esperança de que ela possa ajudar jovens educadores a ver a história da educação com mais cuidado.

Olá, xxxxxxx.

Ótimo o seu blog. Siga em frente. Se você conseguir mantê-lo durante todo o curso, poderá construir um magnífico registro de aprendizagem. Acho que, de alguma forma, sou um pouquinho responsável por essa aventura. Não deixe, portanto, de me cobrar participação, palpites colaboração.

Em seu post anterior há alguns registros sobre movimentos educacionais que merecem alguns reparos. Você fez um resumo de um resumo e, talvez por isso, perdeu alguma substância. Como o espaço aqui é pequeno, farei observações telegráficas:

1. Educação Tradicional. Não foi 'fundada pelos jesuítas' em 1549. A data marca o início de oferta de educação sistemática em colégios jesuítas no Brasil. Cabe ressaltar que, em sua época, os jesuítas propõem uma educação que tem muitos aspectos inovadores. No caso brasileiro, há inovações interessantes no uso de música e teatro na educação dos indígenas. É claro que há aspectos ideológicos que devem ser considerados, mas precisamos entendê-los no tempo. Outra coisa, o rótulo 'Educação tradicional' é aplicado a uma gama muito grande de movimentos educacionais. Mas é preciso reparar que há diferenças notáveis entre as diversas educações abrangidas por tal rótulo.

2. A Escola Nova não começa em 1932. A data marca a publicação de um documento importante, o Manifesto dos Pioneiros. A Escola Nova é um movimento cujas raízes remontam às últimas décadas do século XIX. Chegou mais tarde ao Brasil, mas de qualquer forma apareceu por aqui bem antes do Manifesto de 32. O ideais da Escola Nova são hoje predominantes. O que não quer dizer que sejam corretos. Nem que sejam necessariamente melhores do que alguns aspectos da Educação Tradicional. A história não é uma narrativa que separa mocinhos (Escola Nova) e bandidos (Educação Tradicional). É algo com mais nuances, detalhes, caminhos alternativos, matizes (muitas e muitas cores, em vez de apenas preto e branco...). Algumas das convicções escolanovistas são bastante contestáveis...

3. Sua explicação sobre Escola Tecnicista também é problemática. Certamente o tecnicismo não tem com ponto de partida o ano de 1964. Esse é ano em que começa a ditadura no Brasil... O tecnicismo tem seus começos em data mais distante e não é um movimento de contornos tão nítidos como alguns livros didáticos sugerem. Nem é também um movimento do qual resultam ensino individualizado, recursos audiovisuais etc. Cada uma dessas coisas tem uma história um pouquinho mais complicada (os audiovisuais, por exemplo, têm a ver com coisas como a invenção da fotografia, do cinema, do rádio, do disco, da possibilidade de reprodução massiva das imagens etc.). Os laboratórios de audiovisuais existiram bem antes da ideologia tecnicista (cabe lembrar que certa 'ciência da educação' - marcada por estudos da psicologia da aprendizagem por volta dos anos 10 e 20 do século passado - foi muito utilizada tanto por escolanovistas como por tecnologistas).

4. Finalmente, cabe observar que as tendências críticas na educação brasileira não têm como data fundante o ano de 1983 ou o fim da ditadura. Movimentos de educação crítica são marcantes nos inícios dos anos 60, às vésperas do golpe militar. A pedagogia de Paulo Freire começa em tal época. Ao lado dela, outros movimentos notáveis apareceram em nossa terra. Um deles é a história belíssima de educação popular construída no município de Natal, RN, com o prefeito Djalma Maranhão, cujo secretário de educação., Moacir de Góes, escreveu uma memória imperdível sobre a experiência: o livro "De Pé No Chão também se aprende a ler e escrever".

Como você pode ver, não convém usar rótulos muito definitivos para designar fases ou movimentos históricos. Tais movimentos existem, são marcas ideológicas importantes, mas é preciso entendê-los em seu desenrolar no tempo. No geral eles não têm uma data fundante. Começam devagar, em várias partes, e vão ganhando contornos definitivos no tempo. Outras vezes sequer são movimentos. São mais rótulos dados por alguém que tenta simplificar a história. A meu ver é isso que acontece com o título "Educação Tradicional". Historicamente não há tal movimento. A "Educação Tradicional" é muito mais uma invenção de escolanovistas que queriam desacreditar a educação clássica, sobretudo nos Estados Unidos. E Educação Clássica não é necessariamente 'tradicional'.

Fiz as observações aqui registradas com uma intenção: chamar a sua atenção para um trato mais equilibrado da história. Louvo sua disposição em traçar amplos panoramas sobre a educação em nossa terra. Continue com tal interesse. Acho que muitos educadores não têm esse gosto (o que é uma pena). Em parte isso é culpa da Escola Nova, um movimento que colocou os estudos históricos num plano secundário. Mais sobre o assunto, se lhe interessar, pode ser objeto de conversa nossa em outra ocasião.

Continue o ótimo trabalho. Grande abraço,
Jarbas Novelino Barato

Sunday, January 27, 2008

Afro-brasileiro



Na seção Ilustrada, a Folha de S. Paulo publica hoje (27-01-08) um texto do Ferreira Gullar que merece ser lido. A crônica do Gullar nada mais é que uma série de perguntas que problematizam algumas unanimidades do politicamente correto. Quero comentar uma das perguntas que lá aparecem: "Designar negros e pardos como afro-brasileiros significa que brasileiros são apenas os 'brancos'?".
A partir da pergunta, fiquei pensando como adjetivar a minha condição de cidadão deste país. Se obedecer a lógica da questão colocada pelo Gullar, tenho de me apresentar, na ordem decrescente de minhas raízes, como lusitano-ítalo-afro-índio-brasileiro. Esta é uma solução fundada na genética e do que sei dos meus ascendentes de 1700 para cá. Mas ela não seria aceita nas eras racistas dos Estados Unidos. Naquela época, qualquer vinculação provável com algum ascendente negro era motivo suficiente para caracterizar uma pessoa como preto (hoje, afro).
Parece que a boa intenção de utilizar o prefixo afro para designar a condição de pessoas que têm ascendência da mãe África não é uma boa idéia. Parte significativa da população brasileira merece o adjetivo, mas não pode utilizá-lo com exclusividade. Vai ter de misturá-lo em doses variáveis com luso, germano, nipo, polaco, hispano, russo, grego, sírio, libanês etc. Ou, se predominar a perspectiva de que a mancha negra é indelével e anula as demais origens, o adjetivo afro acabará sendo a marca da grande maioria do povo brasileiro.
Há ainda uma outra possibilidade que precisa ser considerada. Ao que tudo indica nossa espécie surgiu nas savanas da África numa data que os especialistas situam por volta de 150 mil anos atrás. De lá, o inquieto homo spiens, migrou para o atual Oriente Médio há uns 60 mil anos (talvez mais cedo que isso). E nos anos subsequentes foi ocupando todas as áreas do planeta. Em resumo, somos todos africanos. Daí, cada um de nós pode usar com muita propriedade o adjetivo afro. Assim, aquele sueco loirinho, nascido no país nórdico deve, com fundadas razões científicas, ser designado como afro-sueco.
Toda essa fala sobre o texto do Gullar não é conversa fiada. Ela mexe com uma questão importante, o racismo. Ela também mostra a necessidade de que conheçamos com mais propriedade nossas raízes africanas. Mama África é a casa original de todos os seres humanos.

Tuesday, January 22, 2008

Ensino facilitário e aluno cliente

Acrescento à conversa sobre ensino facilitário esta excelente observação de Gabriel Perisse:

O aluno visto como "cliente" só porque paga a mensalidade de uma escola ou faculdade. Nada mais injusto. Reduzir o aluno a cliente é prestar-lhe um péssimo serviço. Ele paga para ser exigido. Para aprender a pensar. Para duvidar e construir certezas. Para errar e aprender com o erro. Para aprender a aprender, respeitando o professor, esse "estudioso profissional".

Mais outras observações que podem gerar boas conversas nos espaços educacionais podem ser encontradas no blog do Perisse. Não deixe de visitar.

Monday, January 21, 2008

Ensino facilitário

Para a gente continuar a conversa que iniciei com aquele post sobre dor e aprendizagem, sugiro uma leitura de recente mensagem que apareceu no ótimo De Rerum Natura. Há muita fala dos educadores sobre o bem estar dos alunos. Mas essa fala toda, quando vira proposta de ensino, prejudica acima de tudo os próprios alunos. Vejam isso e muito mais no post Educação dos jovens.

Porco Assado


Boas histórias acabam sendo recontadas. E cada vez que alguém as reconta, mudam-se personagens, enredos, ênfases. É o preço da fama (das histórias) e da falta de cuidado (dos recontadores) na busca de referências. Uma das histórias que recontei tem a seguinte estrutura: guerreiros de uma tribo percorrem trecho da floresta após um incêndio; encontram pelo caminho volumes negros com cheiro bom; experimentam; alimento delicioso; eram porcos que não conseguiram escapar do fogo; porcos assados; os volumes foram levados para aldeia; aconteceu o primeiro churrasco do planeta; dias mais tarde, a tribo queria mais porco assado; os sábios estudaram o problema; decidiu-se incendiar parte da floresta; nenhum porco assado foi encontrado; um visitante propõe método diferente: caçar porcos, prendê-los num cercado, assar porcos numa fogueira sempre que a tribo quisesse mais um churrasco; proposta rejeitada: mudava completamente a maneira conhecida de assar porcos; incêndios continuam; porcos fogem; nada de churrasco; floresta acaba; nunca mais houve churrasco; a tribo, apesar de não conseguir mais porcos assados, reuniu vasta experiência de como queimar florestas.
Reescrevi a tal história a partir de uma narrativa feita por Emílio Sandin Marques, do IPEA, numa palestra em 1978. E usei o material como ponto de partida para conversas sobre planejamento educacional. Nunca soube, porém, qual era a versão original de "Porco Assado". Agora, trinta anos depois, descobri, por acaso, como tudo começou. No livrinho Os pioneiros do pragmatismo americano , John Shook informa que a história que recontei era utilizada por Dewey para conversas sobre meios e fins no campo da ética. Mas o autor da história não é o grande educador americano. Ele, corretamente, dava crédito a Charles Lamb. A versão utilizada por Dewey é que segue:
A primeira vez que se provou porco assado foi quando um acidente fez incendiar uma casa onde confinavam porcos. Enquanto vasculhavam os escombros, os proprietários tocaram nos porcos chamuscados pelo fogo, provocando queimaduras superficiais em seus dedos. Ao levar impulsivamente os dedos queimados às suas bocas, para resfriá-las, eles experimentaram um novo sabor. Como gostaram do sabor, passaram a construir casas, povoando-as com porcos, e depois incendiando-as (cf. p. 161)

Friday, January 18, 2008

Desafios e aprendizagem

Acabo de ler O Erro de Descartes, de António Damásio. Recomendo para qualquer pessoa que queira conhecer interessantes fatos e hipóteses sobre o cérebro humano. A linguagem é gentil e agradável. O assunto é ilustrado por casos de muito interesse humano. Os detalhes biológicos são sempre explicados de uma forma acessível. Este post, porém, não é só uma recomendação de leitura. Quero aproveitar a oportunidade para falar sobre um tema que, volta e meia, merece registros neste espaço: diversão e aprendizagem.
Para começo de conversa, cito aqui o parágrafo final do Erro de Descartes:
A dor e o prazer não são imagens gêmeas ou simétricas uma da outra, pelo menos não o são em termos de suas funções no apoio à sobrevivência. De certa forma, e a maior parte das vezes, é a informação associada à dor que nos desvia do perigo iminente, tanto no momento presente como no futuro antecipado, É difícil imaginar que os indivíduos e as sociedades que se regem pela busca do prazer, tanto ou ainda mais que pela fuga à dor, consigam sobreviver. Alguns dos desenvolvimentos sociais contemporâneos em culturas cada vez mais hedonistas conferem plausibilidade a essa idéia, e o trabalho que meus colegas e eu atualmente realizamos sobre a base neural das várias emoções reforça ainda mais essa plausibilidade. Há mais variações de emoção negativa que de emoção positiva, e é claro que o cérebro trata de forma diferente essas duas variedades. Talvez Tolstoi tenha tido uma intuição semelhante quando escreveu no início de Ana Karenina : "Todas as famílias felizes são parecidas umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira".


Damásio mostra que a dor é um alarme que leva o organismo a aprender, a ficar atento, a buscar um novo caminho, a se cuidar. Ela é um lance importante em jogos de sobrevivência. O prazer, infelizmente, não tem tais virtudes. Nele o organismo se acomoda, deixa de ter atenção, descuida-se das pistas ambientais.
É preciso cuidado com as palavras aqui utilizadas. A dor, para Damásio, não é apenas aquele incômodo do qual queremos (e, geralmente, precisamos) nos livrar. Ela é uma mudança importante na paisagem do corpo. Por isso chama a nossa atenção. Por isso ensina. Permito-me utilizar as idéias do autor no contexto educacional. O processo de aprendizagem é um processo de mudança. Por isso incomoda. Pode trazer certo desconforto. Tem certa analogia com a dor, principalmente quando o desafio a ser enfrentado é de caráter intelectual e mexe fortemente com nosso conforto. As condições necessárias à aprendizagem são desafios que mexem com a tanquilidade da paisagem já estabelecida de nossas crenças ou ignorâncias.
Apresento aqui uma idéia que contraria os sonhos atuais de como deve ser a escola: um local de prazer e diversão. No campo da tecnologia educacional, essa tendência produziu, por exemplo, programas irrelevantes na linha do edutainment (educação com ou pela diversão). Uma experiente professora d matemática me disse certa vez que as orientações que recebia indicavam que a única matéria que poderia integrar currículos escolares era educação física. Provavelmente ela se referia a aulas de educação fisica que são sinônimos de jogo.
Já escrevi demais. É hora de colocar um ponto final neste post. E coloco-o insistindo na idéia de que aprender é um desafio, não um mergulho em fluxos prazerosos que não exigem claramente mudança, nem provocam desconforto que precisa ser superado em aventuras de encontrar novas formas de viver.