Volto ao livro de Peter Perret. Desta vez vou navegar pelo capítulo 2, Lessons from the Pied Piper. Como de costume, não referenciarei a matéria a cada passo. Apresentarei as idéias num texto meu, mas o leitor sabe que faço aqui um resumo interpretativo desse livrinho genial sobre música na educação. Sem mais delongas, vamos ao que interessa.
Cinco pessoas desconhecidas, carregando instrumentos musicais, entram na sala do primeiro ano primário. Sentam-se num semicírculo de cadeiras que estão próximas do quadro negro. Nada dizem. Preparam os instrumentos. Olham-se e começam a executar um peça musical. As crianças, sentadas no chão, olham para os músicos com muita atenção. Estão calmas e, ao mesmo tempo, escutam tudo com aparente prazer e curiosidade.
Assim que toca as últimas notas, o quinteto é aplaudido com entusiasmo. Debra, a flautista do grupo, dirige-se à classe. Apresenta-se e pergunta:
_ Quantas pessoas vocês vêem aqui?
Fácil. As crianças respondem:
_ Cinco.
Debra continua.
_ Como se chama um grupo musical de cinco pessoas?
Desta vez a resposta não vem e a flautista acaba dizendo às crianças que a resposta é quinteto.
Debra continua o diálogo mostrando sua flauta e tirando dela algumas notas. Pergunta se o instrumento faz os sons mais altos ou mais baixos do conjunto. As crianças respondem que a flauta faz sons muito altos. A flautista aproveita para fazer uma comparação. Lembra uma propaganda em que aparece um chihuahua. Incentiva as crianças a imitarem o latido do pequeno cão mexicano. Pergunta depois pelo cão que aparece no filme Beethoven. As crianças sabem que é um São Bernardo. Debra pede uma imitação do latido do cachorrão. As crianças tentam fazer aquele latido grave. Estabelece-se aí uma constatação: pequenos instrumentos (e cães) fazem sons altos; grandes instrumentos (e cães) fazem sons baixos.
Outra componente do quinteto, Cara Fish, entra na conversa. Seu instrumento é o oboé. Ela pede ás crianças para participarem de um pequeno experimento: colocar os dedos de uma mão junto ao pescoço e fazer um hummm. Pergunta-lhes o que sentem. Resposta: vibração. Cara continua o papo mostrando seu instrumento e solicitando comparações com a flauta de Debra.
O terceiro músico a se apresentar é Eillen Young, o clarinetista. Propõe mais comparações. Mostra partes de seu instrumento. Dialoga com as crianças sobre vibração da palheta e produção de som. Depois de Eillen, Kendal Wilson mostra seu curioso instrumento, o fagote. Maior que os outros. Com sons mais graves. Finalmente, Bob Campbell, o dono de um instrumento estranho, a trompa ou uma espécie de chifre metálico de carneiro, se apresenta. Mais sons. Mais comparações. Mais diálogo com as crianças.
Feitas as apresentações, começam as perguntas. E elas são muitas. As crianças querem saber tudo sobre os instrumentos, os sons que produzem e detalhes da vida dos músicos. O tempo voa. Os vinte e cinco minutos planejados para a conversa inicial já se foram.
Os músicos dizem que vão apresentar uma melodia bem conhecida. Pedem às crianças para acompanhar a execução sem cantar a música externamente. Pedem que a cantem "internamente". Pedem outra coisa: atenção para reconhecer qual instrumento inicia a peça musical. Finalmente, fazem outra solicitação: tentativa de acompanhar cada instrumento durante a execução. As crianças seguem atentamente a execução. Algumas movimentam os dedos, tocando instrumentos invisíveis. Todos memorizam que o oboé iniciou a música. Todos movimentam seus corpos acompanhando o ritmo.
A narrativa aqui apresentada mostra como acontece a primeira sessão dos encontros do quinteto de sopro com alunos de uma escola de ensino fundamental. No caso, a cena aconteceu na Arts Based Elementary School, em setembro de 2003. Desde 1995, esta cena é revivida no projeto Bolton.
As crianças vem de todas as classes e etnias da cidade. Muitas tem sérios déficits de aprendizagem. Os músicos nada sabem sobre isso. Não estão preocupados com essas diferenças. Estão ali para ensinar algo mais fundamental que diferenças raciais, econômicas ou sociais. O que estão comunicando é uma linguagem universal e muito antiga. O que as crianças estão fazendo é responder ao som da música com seus corpos e mentes da forma como nossa espécie humana evoluiu para fazer.
Pessoas que estiveram presentes em encontros do quinteto com as crianças enfatizam como a música ao vivo tem efeitos completamente distintos da música gravada. Ela tem uma riqueza maior, provoca grande interesse e curiosidade. Gravações tem o seu lugar em nosso mundo, mas não criam o efeito magnético que os músicos do quinteto provocam nas salas de aula.
A primeira sessão musical do quinteto tem uma raiz histórica respeitável. Recentemente foram descobertos instrumentos musicais, feitos de ossos de mamute, de mais de dezoito mil anos. Uma flauta de osso, com cerca de sete mil e quinhentos anos, achada na China, ainda produz música numa escala de sete notas. Indícios arqueológicos sugerem que já havia produção musical há uns cinquenta mil anos. Há bastante razão para se acreditar que nossos ancestrais que começaram a andar erectos liberaram a garganta para a produção musical. Isso situa a origem da música na casa de um milhão de anos ou mais.
Nossos ancestrais certamente se comunicavam por meio de sons musicais. Sons modulados devem ter funcionado como forma de comunicação para agregar membros da tribo, para planejar ação conjunta numa caçada, para indicar local com abundância de alimentos. Esses papéis ainda continuam a ser desempenhados em nosso mundo, com algumas transformações. As tribos de hoje, por exemplo, podem ser torcidas de futebol...
Cientistas como Isabelle Peretz, da Universidade de Montreal, sugerem que a núsica é instintiva. Nascemos musicais. Apreciar certos tipos de música, assim como produzí-los, são formas de concretizar um potencial que já vem instalado no organismo.
Sons modulados também devem ter sido usados pelas mães de nossos distantes ancestrais nas comunicações com seus filhos pequenos. Esta, aliás, continua a ser uma forma de comunicação de importância fundamental entre mães e filhos na primeira infância. Todos nós conhecemos e quase certamente já usamos o "manhês", um idioma no qual musicalidade é mais importante que o significado das palavras utilizadas.
A música provavelmente desempenhou papel importante no desenvolvimento da linguagem. Desempenhou também papéis relevantes na coesão social e em eventos de comunicação do dia-a-dia. Ela não era e não é tão somente um ornamento ou item de entretenimento.
Meu resumo interpretativo do segundo capítulo do livro de Perret vem até aqui. Para encerrar este post, julgo que cabem algumas observações pessoais despertadas pela leitura da obra. Vou apresentar tais observações como destaques.
- Os conteúdos presentes nos diálogos entre o quinteto e as crianças são musicais. Não são matéria de outra área amaciada com música. Conceitos sobre diferenças e similaridades são conversados a partir de observações sobre sons produzidos pelos instrumentos musicais. Já na primeira sessão, o quinteto explora conceitos musicais que podem gerar analogias esclarecedoras com conteúdos de outras áreas de saber
- A música apresentada é profissional. Essa circunstância mostra a vantagem de uma educação sobre música que se funda em produções de qualidade.
- A música apresentada não nasce de pesquisa sobre repertório da cultura de onde vem as crianças. Ou seja, o quinteto não toca a"música das crianças". Toca uma música de caráter universal, pois os criadores do projeto Bolton acreditam na universalidade da música. Isso sinaliza que apesar de grandes diferenças, as crianças são tratadas como gente capaz de apreciar e entender música sem marcas individuais, locais, étnicas, de classe social. Esta direção é um bom ponto de partida para considerações sobre a necessidade do universal nos programas de educação.