Cara XXXXX,
Evento marcante na formação profissional no campo da hotelaria foi a inauguração do hotel escola de Águas de São Pedro (salvo engano, no ano de 1968 - se interessar, é bom você conferir a data com o Senac de São paulo).
No hotel escola, os alunos de cozinha, sala e recepção atuavam em tempo integral em postos de trabalho que atendiam a clientes comuns do hotel. Todas as atividades aconteciam de acordo com ritmo e necessidade de funcionamento do hotel. O plano pedagógico não interferia naquilo que os alunos faziam em seus postos de trabalho. A atuação deles dependia de ocorrências de serviço e de julgamento da supervisão. Ou seja, cada aluno realizava técnicas de trabalho de acordo com a dinâmica de funcionamento do hotel e de acordo com o que lhes era determinado pelo chefe de cozinha, pelo maitre ou pelo chefe de recepção.
O que descrevi no parágrafo anterior corresponde àquilo que chamamos de aprendizagem corporativa. Ou seja, aprendizagem que se dava no interior das corporações de ofício. Esse tipo de aprendizagem nada tinha a ver com a didática criada para o aprender em escolas. Em vez de desenvolver o conhecimento em salas de aula, as corporações de ofício ensinavam profissões nas oficinas, e o aprendiz participava desde o primeiro instante do processo produtivo.
Penso que seria muito interessante uma pesquisa para investigar como aconteceu a formação em hotelaria nas décadas iniciais dos cursos oferecidos pelo Senac. Minha hiopótese é a de que referências da aprendizagem desenvolvida pelas corporações de ofício predominou. Os motivos para isso, entre outros, foram: não havia qualquer referência prévia, por isso a organização valeu-se da experiência de profissionais respeitados em seus respectivos ofícios (os professores de hotelaria eram profissionais com muita experiência no ramo); os educadores profissionais não sabiam como organizar a nova formação, as referências da didática escolar não lhes davam qualquer pista sobre o assunto; os educadores da casa entenderam intuitivamente que o melhor caminho de formação seria aquele tradicionalmente utilizado no interior das corporações de ofício. Repare que estou dizendo que a solução foi intuitiva. Não há registro de que o Senac tenha adotado explicitamente métodos utilizados pelas corporações. Em vez disso, apostou na experiência dos profissionais que traziam para a organização certa memória de como aprenderam a trabalhar.
O aprender no posto de trabalho era acompanhado por atividades em sala de aula. Eventualmente, havia no centro de formação laboratórios (cozinha pedagógica, apartamento modelo, laboratório de sala), mas o treinamento em tais ambientes, pelo menos no hotel escola, era apenas uma iniciação. A aprendizagem "pra valer' acontecia em ambientes de trabalho com atendimento a hóspedes comuns.
Na hotel escola há muitas circunstâncias que devem ser consideradas. Algumas vezes os maitres, chefes de recepção e chefes de cozinha eram também professores que ensinavam em sala de aula. Mas muitos supervisores, chefes e maitres não davam aulas convencionais. Apenas supervisionavam o trabalho dos alunos no postos de trabalho. Outra coisa: num mesmo ambiente ou setor havia alunos de diversos níveis - iniciantes, intermediários, concluintes. Havia também funcionários "comuns" (funcionários dos quais não se esperava nenhum papel de supervisão de ensino no local de trabalho, pois eram contratados apenas para agilizar o serviço). Assim, num dado ambiente de trabalho - o bar, por exemplo - era possível encontrar alunos de diversos níveis, chefias com função de instrutoria e funcionários comuns. Todos eles trabalhando de modo interativo para que o serviço oferecido - a clientes reais - fosse da melhor qualidade possível. Esse ambiente configura o que pesquisas recentes costumam chamar de "comunidades de prática" (tome cuidado com o uso dessa expressão; ela não designa simples execução; ela designa práticas sociais em grupos que tem um objetivo comum; no caso do trabalho, ela designa a associação de pessoas que buscam produzir uma obra bem feita).
O que se aprende em comunidades de prática não pode ser transferido para situações formais e abstratgas de ensino. Ou seja, a aprendizagem em comunidades de prática não pode ser escolarizada. Certo conteúdo técnico pode ser isolado e até ensindo como 'competência' específica. Mas ao separar técnica de seu contexto de significação, um trabalho concreto cujo fim é uma obra com a qual se identificam os profissionais, esvazia-se o conteúdo do trabalho. Este perde, entre outras, suas dimensões axiológicas (a referência dos valores), suas dimensões éticas (a referência da obra nas relações eu/outro), e até as dimensões psicológicas (a referência de um fazer que forja a identidade do profissional - "somos aquilo que fazemos").
Até aqui apontei algumas pistas que considero importantes em estudos sobre formação profissional em qualquer área. Boa parte desses meus apontamentos é resultado do estudo de duas obras indispensáveis:
- LAVE, J. & WENGER, E. (1991). Situated Learning: Legitimate peripheral participation. Cambridge: Cambridge University Press.
- WENGER, E. (1998). Communities of practice: Learning , meaning, and identity. Cambrige: Cambrige University Press.
Há outro livro que merece atenção no caso:
- CHAIKLIN, S. & LAVE, J. (1996). Understanding Practice: Perpective on activity and context. Cambridge: Cambridge University Press.
Antes de mergulhar nas obras aqui citadas, é bom ler Mike Rose, que, num livro excepcionalmente bem escrito, mostra como a pessoas aprendem a trabalhar com as outras em contextos significativos. A obra de Rose foi traduzida para o português e pode ser encontrada em:
- ROSE, M. (2007). O Saber no Trabalho: Valorização da inteligência do trabalhador. São Paulo: Editora Senac.sp.
Insisto numa leitura de Rose. Para você que é da área de hotelaria, há um capítulo imperdível, A Vida de Trabalho de uma Garçonete. A mãe de Mike sustentou a família durante mais de trinta anos com seu trabalho em restaurantes. O filho, que sabia que serviços de sala exigem muitos saberes, ao escrever sua obra sobre o conhecimento dos trabalhadores optou por começar seu livro com uma análise inspiradora sobre o ofício das mulheres que dão vida aos serviços de sala nos "family restaurants"dos Estados Unidos. Rose analisa outras profissões e o saber intrínseco que elas tem. Além de analisar conhecimento, ele faz observações notáveis sobre valores, ética, dimensões políticas. Como disse, ler Rose é uma necessidade se quisermos entender como se dá a trama da aprendizagem na formação dos trabalhadores.
Há dois livros interessantes para estudos sobre aprendizagem artesanal:
- RUGIU, A. (1998) Nostalgia do Mestre Artesão. São Paulo: Editora Autores Associados.
- RUGIU, A. (1995) Il Braccio e la Mente: Un millenio di educazione divariccata. Firenze: La Nuova Italia Editrici.
Para estudos sobre aprendizagem artesanal convém ler também um livro saído recentemente:
- SENNETT, R. (2008). The Craftsman. New Haven & London: Yale University Press (a obra foi traduzida para o português, mas não tenho em mão a versão brasileira para referenciar).
Em meus contatos recentes com pesquisadores na área, tenho conversado com Lev Mjelde, da Noruega. Lev escreu recentemente um livro que estuda diferenças entre o aprender na escola e o aprender em centros de formação profissional. As primeiras sempre foram influenciadas por aquilo que a autora chama de educação literária. Os segundos tem planos de estudo inspirados pelo aprender em oficinas. Segue referência do livro da minha amiga norueguesa:
- MJELDE, L. (2006). The magical properties of workshop learning. Bern: Peter Lang. AG, International Academic Publishers.
Realizei estudo sobre particularidades do ensino de técnicas no Senac, sobretudo nas áreas de beleza, saúde e informática. Esse meu estudo foi publicado em livro:
- BARATO, J. N. (2003). Saberes do ócio ou saberes do trabalho?. São Paulo: Editora Senac.sp.
Há mais informações que eu poderia elencar, mas falta-me tempo para lhe enviar uma resposta mais extensa e completa. Espero, porém ter sido de alguma ajuda. Gostaria de ser informado sobre desdobramentos do estudo que você pretende fazer. Grande abraço,
Jarbas.
TE: Não trabalho mais no Senac. Aponsentei-me na organização em 2003, mas ainda continuo ligado em estudos sobre educação e trabalho.
2 comments:
Jarbas, o livro do Sennet foi publicado no Brasil com o título de O ARTÍFICE, pela Editora Record.
Gostaria de aproveitar este importante espaço pedagogico para divulgar o XII Congresso Internacional de Pedagogia 2011 que ocorrera em Havana - Cuba de 24 a 28 de Janeiro de 2011.
O Evento é auspiciado pelo Ministerio da Educação - UNICEF - UNESCO - Associação dos Estados Ibero Americanos de Educação e outros.
Convidamos a professores e Educadores enviarem trabalhos academicos ou projetos pedagogicos atraves do site http:www.lionstours.com/pedagogia2011.html
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