Friday, July 13, 2007

Por causa de uns bagrinhos...


Semanas atrás ouvi no rádio comentário de que Lula reclamava da resistência dos ambientalistas à construção de barragens no rio Madeira. No seu estilo peculiar, o presidente declarou que obras importantes para o desenvolvimento do país estavam paralisadas por causa de uns bagrinhos. Parece que o atual ocupante do Palácio da Alvorada acha que a sobrevivência de espécies importantes de peixes (no Madeira não há somente bagres...) pode ser deixada de lado em nome do progresso.E mais, acha que a construção de tais mega barragens é o único caminho para garantir energia para a nossa economia. Nem ele nem os principais interlocutores sobre a economia do país abrem a discussão para alternativas. Entendem que a geração de energia tem de ser sempre produto de obras gigantescas.
Todas essas minhas considerações sobre os bagres do Lula nasceram de uma leitura recente. Em artigo do New York Review of Books, Tim Flannery, comenta um livro muito interessante: The Omnivore Dilemma: A Natural History of Four Meals. Flannery mostra que toda a cadeia alimentar dos americanos depende basicamente de um único cereal: o milho.Você pode não ver milho num McDonald, mas todos aqueles sandubas lá servidos têm carne e queijo de animais (vacas, porcos, galinhas) alimentados por ração à base do referido cereal. É possível ver as pistas que o milho deixa no organismo por meio de um exame químico que determina a presença de certas estruturas de carbono. Exames dessa natureza mostraram que há mais traços de milho em americanos que em mexicanos (e olha que os mexicanos não dispensam uma boa tortilla de milho por nada neste mundo).Em pelo menos um quarto dos 45.000 e poucos diferentes itens vendidos em supermercados dos EUA há presença de milho.
O império do milho tem graves conseqüências. A prática de monocultura nas regiões produtoras empobrece o solo. A cultura quase que exclusiva do milho em algumas regiões e exigências de produtividade cada vez maior geram dependência crescente de defensivos agrícolas (produtos químicos nem sempre muito saudáveis). Além disso, o sistema vai expulsando do campo ou convertendo em devedores crônicos os pequenos agricultores.E na roça, o império do milho não é um sucesso econômico. Flannery observa que no estado de Iowa, os agricultores gastam US$2,50 para produzir um bushel (medida agrícola americana semelhante ao nosso velho jacá) de milho, mas recebem dos moinhos apenas US$1,45 pela mesma medida do cereal. Para manter o esquema, o governo federal gasta milhões em subsídios agrícolas. [BTW, esse é um dos motivos de conflito comercial entre Brasil e EUA; a matriz quer que escancaremos completamente nossa economia mas não abre mão de sustentar o falido sistema dos seus milharais]
Um aspecto narrado pelo articulista mexe com nossa sensibilidade. Na maior parte dos casos, o gado de corte americano é estabulado. Ou seja, passa toda a sua vida de desenvolvimento e engorda de pé, preso e quase imóvel num espaço minúsculo, frente a um cocho. E adivinhem? Nos cochos a ração servida à vontade é baseada em milho. Os compostos alimentares desse cereal engordam o gado mais depressa. Mas, vacas e bois não são comedores de milho. Comem a gororoba porque estão presos frente ao cocho. Por causa de tal dieta, os bichos costumam ter muitos problemas estomacais. Solução: baterias de antibióticos. Uma outra coisa: estabulados noite e dia, bois e vacas vivem literalmente sobre suas próprias fezes. Essa circunstância aumenta muito o número e diversidade de bactérias no pelo dos bichos. Esse é um problema que exige cuidados especiais na hora de abater o gado para consumo. Riscos de contaminação da carne são muito maiores em bichos que vivem nos estábulos. Esse não é o único modo de produzir carne, os animais poderiam ser criados mais naturalmente, pastando em campos com boa variedade de gramíneas. Nos campos agrícolas da terra do Tio Sam, a diversidade de capins deu lugar a uma única grama: o milho. "Mas para que tanta grama diferente?" diria nosso presidente, imbuído pela neo-verdade liberal de que há um único caminho.
Depois de examinar os muitos males causados pela monocultura do milho nos EUA, Flannery mostra que a produção de alimentos não precisaria necessariamente acontecer nos moldes em que ela ocorre hoje no país do norte. Há alternativas mais sadias de produção de alimentos. Mas elas implicam em modelos diferentes de tamanho e manejo de propriedades rurais. Elas também eliminam boa parte da necessidade de itens alimentares que viajam centenas e até milhares de quilômetros para chegar ao consumidores. Eventualmente poderiam custar um pouco mais, caso não contassem com os generosos subsídios governamentais concedidos a produtores e indústria do milho. As produções alternativas de alimentos, obviamente, enfrentam grandes dificuldades. Apesar de se basearem em maior equilíbrio da Natureza e numa economia que dá mais espaço para negócios da comunidade local, elas vivem à míngua ou são vistas apenas como excentricidades de intelectuais desocupados.
Volto aos bagrinhos. O que tem a ver a história do milho com a filosofia do presidente? Tudo a ver. Lula está convencido de que não há alternativa, as barragens do Madeira precisam ser construídas. Junto com seus assessores e ministros não vê qualquer outra possibilidade de geração de energia. Fica com a solução única gestada pelos gênios neo- liberais aqui da terra. Além da questão econômica, os bagrinhos do Lula colocam a nu outro aspecto dos modelos hegemônicos: a vida importa muito pouco. Perder diversidade de espécies é para essa gente apenas um pequeno detalhe. Essa gente acha que pode colocar a Natureza de joelhos. E se pode a coloca. É muita arrogância ignorante. Por isso, sempre achei que todos os cidadãos, presidente da república incluso, deveriam saber mais biologia.
Se você chegou até aqui deve estar se perguntando o que este post faz num blog voltado para tecnologia educacional. Eu acho que o dito cujo está num espaço adequado. As duas histórias, a do bagrinho e a do milho, nos mostram diversos aspectos que têm tudo a ver com educação. Em primeiro lugar mostram como é importante o conhecimento de biologia, ciência muitas vezes marginalizada nos currículos escolares. Mostram que, em diversas instâncias de decisão política, nossas lideranças não pensam em alternativas nem abrem espaço para discussão sobre outros modos de encaminhamento. Saber disso e examinar as questões com conhecimento de causa são condições necessárias para exercício da cidadania. Ou, colocando as coisas de uma outra maneira, gente ignorante em ciências tem parte importante de sua cidadania alienada, achando que a história dos bagrinhos do Lula é apenas folclore, ou que o imenso milharal do nosso irmão do norte é uma fatalidade determinada por clima e economia. Nossos alunos estão aprendendo ciência suficiente para entender o significado da história dos bagrinhos, e os males biológicos e econômicos das monoculturas?

7 comments:

Anonymous said...

Professor,
Post excelente como sempre! Divulguei o post e publiquei duas animações que, penso, são relacionadas a ele!
Um abraço

Jarbas said...

Para quem chegou até aqui, sugiro um pulo lá no espaço da Miriam para ver as animações que ela menciona. São imagens e comentários esclarecedores. Reforço a recomendação e agradeço a Miriam pela força. Abraço, Jarbas

Fátima Campilho said...

Penso que nosso presidente anda fazendo umas comparações estarrecedoras. Sou da era do rádio e ouvi hoje pela manhã que ele andou dizendo que "fazer obras é mais difícil que galinha botar ovo".
Estou tentando colocar as idéias em ordem depois de passar dois dias em retiro espiritual na Canção Nova aqui do Rio e estar assistindo na GNT ao documentário Quaderna. Imperdível!
Olha só, nunca gostei muito dessa disciplina, mas procuro ler quase tudo sobre Ecologia. Cada vez me irrito mais com política e, por enquanto, prefiro ficar apenas observando e participando das assembléias do sindicato.
Nessas últimas semanas participei de palestras na UERJ com Elvira Lima. Assunto: Neurociência. Ela é pior que Fidel Castro, se der, fica 24 horas falando sem parar. Como nunca tinha lido nada sobre o tema, fiquei pensando:"Essa mulher é inteligente", mesmo porque pensei que ela fosse dar maiores esclarecimentos sobre os ciclos de aprendizagem! No SENAI, fiquei ouvindo a Profª Maria Teresa de assunção Freitas falar sobre Letramento Digital de Adolescentes, um exercício de aprendizagem para o professor. Sinceramente? Não me acrescentou nada, talvez porque venha mantendo contato com vocês. Minha chefe da Divisão de Mídia e Educação disse que na palestra da tarde ela citou meu nome e começou co minhas simples perguntas: Quem tem PC? Quem usa Internet? MSN? ORKUT? Blog? Site? Convenhamos!
E o que isso tudo tem a ver com bagres e milhos?
As informações são muitas, as mídias também. Se nós não damos conta, imaginem nossos alunos que não estão nem aí para a "cor da carne seca".
Deu para entender essa loucura toda aí? Imagine a cabeça dos meus alunos para conseguirem acompanhar a rapidez dos meus pensamentos. Não consigo ser didática.
Ah, queria tanto ir à Floripa!
Abraços.

Anonymous said...

Olá, professor.

Há um professor, não lembro seu nome, que anda com programas de proteção a um, dos muitos, rios que andam sendo ameaçados no nosso território. Ele participou do REPORTER ECO, da TV Cultura, há umas duas ou três semanas. E um comentário dele me fez refletir bastante. Ele disse que a única riqueza do mundo é a diversidade biológica, e que os dirigentes não entendem isso.
Como disse, prof. Jarbas, falta noções básicas de biologia e coevolução. Mas eu afirmo, ainda, que falta percepção da grandiosidade da vida.
Infelizmente, eu acho que a Natureza (entende-se também por Destino, Deus), resolverá o problema antes que o homem. Haja vista que os problemas delas andam crescendo em progressão geométrica, enquanto nossa consciência, aritmética - aplicando, analogicamente, a conclusão do economista britânico Thomas Malthus sobre o crescimento da população e a disponibilidade de nutrientes para estes infelizes.

Um abraço!!
Até o início das aulas.

Elisa Kerr said...

Oi Jarbas,

A coisa está feia! Não falta muito para o homem entrar para a lista de animais em extinção, neste caso podem até dividir o homem em duas listas distintas: homens racionais e homens irracionais ( creio que essa lista será maior e muitas figuras importantes estarão nela).
Isso não é responsabilidade apenas da disciplina de biologia, mas de todas. Ontem assisti a um programa no Discovery sobre os MAIAS pré-clássicos(se não me enganei) que habitavam a região da Guatemala. Fiquei admirada em saber que eles já eram uma potência antes de Cristo e que o mesmo produto que os elevou a categoria de potência os levou a ruína ( o extrativismo) e nesse caso entra História. A sensibilidade e criatividade, alternativas entra diversas categorias da arte. O tamanho e dimensão quantitativa entra matemática e assim vai...
Todos educadores tem sua parcela de responsabilidade, mas concordo que determinadas disciplinas podem desenvolver, melhor que outras, nossas crianças para este tema.
Um abraço
Elisa

Fátima Franco said...

Olá, professor:
meu blog sobre leitura foi indicado para o prêmio Blog com Tomates.
Tomei a liberdade de indicar também o seu blog para a premiação.As informações estão no Blog Leitura Escola.
Abraços e bom final de férias.

Jarbas said...

Caros amigos,

Andei uns dias pelos interiores de São Paulo. Fui ver meus velhos e velhos amigos. Fiquei longe de computadores na ocasião. Ao voltar, vejo que há mais comentários sobre este post do bagrinhos. Agradeço as visitas e os comentários.
Para a Fátima, devo dizer que informações transmitidas didaticamente criam depedência. Apesar de nossos alunos ficarem aparentementemente desorietados, é melhor apresentar-lhes informações em estado bruto, sem tratamento didático. Afinal, no cotidiano todos nós precisamos é de lidar com informações que não foram pré-mastigadas a fim de facilitar nossa digestação cognitiva.
Agradeço a presença de meu aluno Victor e o desafio a trabalhar com a questão do ensino de ciências no semestre que está começando. Victor, se você topar, seria legal que seu grupo produzisse e experimentasse uma WebQuest sobre o Rio Madeira. Se houver acordo, você e o povo de seu grupo poderiam aparecer por aqui e contar o que farão.
Elisa, apesar dos pesares, não sou pessimista quanto ao que a nossa espécie faz e pode fazer com relação ao ambiente. Afinal de contas foi esta mesma espécie a entidade que elaborou todo um saber científico que nos permite comprender cada vez mais a vida.
Finalmente quero dar meus parabéns pela indicação do blog da Professora Fátima para o prêmio "Blog com Tomates". Além disso, quero agradecer sua consideração pelo meu blog (mas ele não é páreo para trabalho tão significativo quanto o seu...)
É isso aí. Abraço a todos. Jarbas